Sobre Alexandre de Moraes e um pouco mais.
Atuação do ministro foi importante para que a democracia se protegesse de uma ameaça existencial contra si, e isso precisa ser levado em consideração. Mas agora era a hora de exercer a autocontenção.
Na última sexta-feira, dia 30 de agosto, o ministro Alexandre de Moraes, do STF (Supremo Tribunal Federal), determinou a suspensão completa do X, antigo Twitter, em todo o Brasil. A decisão se deu após a rede social se negar a cumprir decisões judiciais de bloqueio de contas de indivíduos que estariam ameaçando e coagindo delegados com atuação no inquérito das milícias digitais, do qual o juiz é relator. O bilionário Elon Musk, dono do X, anunciou publicamente que não acolheria as ordens e fechou o escritório da rede em solo brasileiro, justamente para escapar das consequências de desrespeitar as decisões do Supremo – que incluíam multas à empresa, as quais correspondiam a quase 20 milhões de reais quando da suspensão. Após a flagrante desobediência, reiterada, Alexandre de Moraes determinou que fosse apontado um novo representante legal do X no Brasil. Como mais uma vez não foi atendido, procedeu com o bloqueio da rede social.
Se a decisão do juiz tivesse parado na suspensão, talvez ainda fosse a ordem com maior repercussão internacional da história da Suprema Corte, mas não geraria o mesmo grau de controvérsia que outro dispositivo: mandar a Apple e o Google excluírem aplicativos de VPN – que são programas de redes privadas valorizados pelo respeito ao direito à privacidade – de suas lojas virtuais e impor multa de 50 mil reais a qualquer brasileiro que acessasse o X no país, usando VPN, enquanto o bloqueio perdurasse. Embora o ministro tenha revisto a primeira parte da sua determinação, manteve a segunda intacta, extrapolando os limites da coisa julgada e impactando o direito de centenas de milhares de pessoas que não figuram como partes do feito. A OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) corretamente se insurgiu contra isso. Alexandre de Moraes se notabilizou por medidas juridicamente heterodoxas, e parece ter desgosto da autocontenção. Não era agora, enfrentando o homem mais rico do planeta, que iria parar.
Essas medidas se avolumam no bojo, principalmente, de dois inquéritos distintos que o ministro relata no STF: o das fake news, instaurado em 2019, e o das milícias digitais. Diante das ameaças às quais todas as instituições democráticas foram submetidas no governo de Jair Bolsonaro, a Corte se autoconcedeu poderes extraordinários – pouco ou nada delimitados – e deixou que Alexandre de Moraes personificasse todas as decisões controversas que precisavam ser tomadas para proteger a espinha dorsal da Constituição de 1988 – ainda que isso significasse uma posição anti-formalista contrária a muitos de seus dispositivos. O grau de concretude das intimidações que a democracia enfrentou é algo que costuma escapar às análises de comentaristas à direita, aos quais é bastante conveniente minimizar o quanto o país esteve próximo da barbárie. Diante de um Congresso omisso – abastecido, também fora da caixinha dos Poderes da República, com valores milionários em emendas impositivas, e finalmente silenciado de vez com o Orçamento Secreto, na presidência Arthur Lira – e de uma PGR (Procuradoria-Geral da República) aparelhada, coube ao STF tomar as rédeas do front democrático.
Há quem discorde que essa foi a origem dos inquéritos. Críticos costumam dizer que o inquérito das fake news foi instaurado para apurar uma investigação contra a Revista Crusoé por uma matéria que atingia o ministro Dias Toffoli – a defesa de Marcelo Odebrecht teria ligado o magistrado a uma investigação da Lava Jato –, não guardando qualquer ligação com a defesa da ordem democrática. Mas isso não é verdade, a despeito do absurdo que foi aquela decisão contra a liberdade de imprensa em 2019. O procedimento foi criado um mês antes para apurar os comentários ofensivos do procurador da República Diogo Castor de Mattos ao Supremo. Não que isso seja muito melhor. Mas, para se ter uma noção, apenas um dia após a decisão contra a Crusoé, em 16 de abril de 2019, Alexandre de Moraes ordenou o bloqueio de sete perfis nas redes sociais. Um deles era o general da reserva Paulo Chagas, que havia sido candidato a governador do DF em 2018 e publicava conteúdos golpistas, como pedir a instauração de um Tribunal de Exceção contra os ministros do STF. Outro deles, um policial civil, citou o autogolpe de Fujimori no Peru como exemplo a ser seguido e convocou os seus seguidores a defender o fechamento do Supremo. A Corte já estava claramente tentando conter a influência antidemocrática na esfera pública.
Dito isso, a instauração de inquéritos de ofício é, com razão, objeto de enorme polêmica – e deveria ser mesmo, ao menos para qualquer um interessado no respeito ao Estado de Direito. A Constituição de 1988 preceitua caber privativamente ao Ministério Público promover a ação penal pública, requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial. Já o procedimento das fake news, que deveria ter objeto bem definido, se desenrolou à revelia da PGR, que promoveu o arquivamento dos autos pela primeira vez ainda em abril de 2019, com uma Raquel Dodge em busca de recondução ao posto ainda à frente da instituição. Para tanto, os ministros se basearam no artigo 43 do Regimento Interno do STF, com força de lei, segundo o qual “[o]correndo infração à lei penal na sede ou dependência do Tribunal, o Presidente instaurará inquérito, se envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição, ou delegará esta atribuição a outro Ministro”. Mesmo desconsiderando o debate sobre a constitucionalidade do referido dispositivo, a Corte ainda precisou de certo malabarismo, entendendo que a norma também era aplicável a ilícitos cometidos pela internet. Hoje, um ministro investiga e aplica sanções no mesmo inquérito em que é vítima e juiz. É sim algo para se olhar com preocupação, e à primeira vista, me pareceria inconstitucional – ao menos diante de uma perspectiva garantista ortodoxa à qual costumo me filiar.
Ainda assim, não tenho vergonha de dizer que considero que os procedimentos de ofício cumpriram importante função política e que a atuação de Alexandre de Moraes foi essencial na defesa da ordem democrática. A melhor forma de explicar a atuação do ministro é por meio da noção de democracia militante, conceito elaborado inicialmente pelo constitucionalista alemão Karl Loewenstein após a ascensão de Mussolini e Hitler na Europa. A ideia é que as democracias devem dispor de recursos de autodefesa contra os seus “inimigos que não estão mais dispostos a discutir e resolver os seus conflitos racionalmente e com base nas regras do jogo democrático”. Dentre as ferramentas que elas possuem à disposição, estão a de restringir a liberdade de expressão e de criminalizar condutas que ameacem ou atentem contra as instituições. Mas a noção de democracia militante pode e deve ser expandida para o campo da interpretação e aplicação da lei.
Parece claro que a interpretação dada pelo STF ao seu Regimento se enquadra justamente sob esse prisma de conferir à legislação uma leitura adequada às circunstâncias daquele momento. Seja pelo contexto fático de graves e concretas ameaças à democracia, seja pela inércia esplêndida da PGR, paralisada diante do golpismo, que tornou precisa essa função probatória excepcional. É o argumento desenvolvido, por exemplo, por Oscar Vilhena Vieira e Ademar Borges em texto no JOTA, com o qual concordo. Uma heterodoxia constitucional que excepcionalmente convalida a constitucionalidade dos inquéritos que, pela ortodoxia garantista, seriam inconstitucionais.
Tampouco acho que toda a atuação de Moraes deveria ser conjuntamente enquadrada como contrária à liberdade de expressão. Por trás disso, há uma mobilização enorme de atores sem compromisso com o futuro do país buscando varrer para baixo do tapete a ameaça que a direita que ascendeu aqui representou – e talvez ainda represente – à democracia. Como se quisessem contar com a memória curta dos brasileiros para fingir que nada aconteceu. Elon Musk, que celebra abertamente os golpistas, costuma dizer que o ministro instaurou um regime de censura, mas os únicos alvos do bilionário – como o bom extremista de direita que se tornou – são os países governados pela esquerda, a exemplo da Austrália e do Reino Unido também. O caso britânico, por sinal, é paradigmático de como as percepções sobre o que significa a defesa do discurso livre são distintas para ele e para o ordenamento jurídico brasileiro e de muitas nações europeias.
Lá, uma fake news circulada pelo X, antigo Twitter, levou milhares de pessoas às ruas – várias delas organizadas em grupos de extrema-direita, inclusive neonazistas – em motins contra islâmicos e imigrantes. Um hotel com solicitantes de asilo foi atacado, por exemplo. A violência foi respondida com prisões, inclusive de quem incitou o ódio e a violência on-line. Musk – que também contribuiu para o caos, chegando a dizer que os britânicos estavam prestes a entrar em guerra civil – achou isso um absurdo. Disse que era censura, e comparou o caso – assim como o do Brasil – com a repressão ditatorial na Venezuela. É o que leva a rede a uma perigosa inércia, como um exemplo deixa claro: a BBC revelou que as postagens de Lucy Connolly, britânica que confessou ter postado um pedido para que os hotéis com refugiados fossem incendiados, foram consideradas aceitáveis pelo X, não sendo derrubadas mesmo após serem denunciadas.
E como estamos falando do homem mais rico do planeta, vale lembrar que ele também é um hipócrita: acolheu determinações de países com Executivos com tendências autoritárias, como a Índia de Narendra Modi e a Turquia de Recep Tayyip Erdoğan, ao mesmo tempo que ignora casos como o de um homem sentenciado à morte na Arábia Saudita simplesmente por tuitar, sobre o qual jamais emitiu uma única palavra – afinal, até onde sabemos, um príncipe saudita possui participação societária no X. O “absolutismo” de Musk na defesa de ideais libertários sempre esbarra em seus interesses comerciais ou políticos, mas não dá para dizer o mesmo de outros atores políticos.
No capítulo II de “Sobre a Liberdade”, o autor liberal John Stuart Mill argumenta que silenciar qualquer opinião é inerentemente errado, independentemente de ser falsa, porque o conhecimento surge apenas do "choque [da verdade] com o erro”. Em outras palavras, a crença verdadeira só se torna conhecimento ao emergir vitoriosa do tumulto de argumentos e discussões, que deve ocorrer tanto com oponentes reais quanto por meio do diálogo interno. Sem esse processo, até mesmo uma crença verdadeira permanece um mero “preconceito” e deveríamos permitir toda forma de expressão – inclusive a defesa de falsas alegações e teorias da conspiração – porque somente assim poderíamos alcançar o conhecimento. Mesmo o filósofo, contudo, registra exceções ao seu ideal de liberdade de expressão na sociedade. O capítulo III se inicia com um trecho relevante:
“Ninguém finge que as ações devem ser tão livres quanto as opiniões. Pelo contrário, até mesmo as opiniões perdem sua imunidade quando as circunstâncias em que são expressas constituem uma incitação positiva a algum ato prejudicial. Uma opinião de que os negociantes de grãos são causadores de fome para os pobres, ou que a propriedade privada é um roubo, deve ser deixada sem restrições quando simplesmente circulada pela imprensa, mas pode justamente incorrer em punição quando proferida oralmente para uma multidão exaltada reunida diante da casa de um negociante de grãos, ou quando distribuída entre a mesma multidão na forma de um cartaz.”
Enquanto grupos violentos tomam as ruas em atos xenófobos, conclamar os seus compatriotas a incendiarem um hotel com refugiados pelas redes sociais é uma circunstância muito similar a “proferir oralmente para uma multidão exaltada” a mesma opinião. Da mesma forma, uma analogia comum a essa passagem foi realizada na Suprema Corte dos Estados Unidos, pelo magistrado Oliver Wendell Holmes, em parecer de 1919. A passagem, proferida no julgamento do caso Schenck vs Estados Unidos, foi tão popular que costuma ser confundida com o próprio texto de Mills. Nela, Holmes argumenta que nem uma sociedade com a mais absoluta proteção à liberdade de expressão protegeria um indivíduo que falsamente gritasse “fogo” dentro de um teatro lotado:
“A proteção mais rigorosa à liberdade de expressão não protegeria um homem que falsamente gritasse ‘fogo’ em um teatro e causasse pânico. Ela também não protegeria um homem de uma liminar contra proferir palavras que possam ter todos os efeitos da força. A questão em cada caso é se as palavras usadas são proferidas em circunstâncias tais e de uma natureza tal que criem um perigo claro e presente de que resultarão em males substanciais que o Congresso tem o direito de prevenir. Trata-se de uma questão de proximidade e grau”.
Com essa discussão em vista, assumindo um argumento desenvolvido por quem queria resguardar a liberdade de expressão como regra, cabe olhar de novo não só para as redes sociais – que lembram muito mais uma praça pública do que um livro – como para o caso brasileiro. O Brasil esteve à beira do precipício. Enquanto presidente, Jair Bolsonaro – que sempre se declarou um admirador da ditadura militar, tendo um de seus torturadores como herói pessoal – tentou um golpe. A maior evidência disso foi elaborada publicamente pela Polícia Federal: uma reunião em que ele, enquanto chefe de Estado, apresentou uma proposta de intervenção militar – delineada na “minuta golpista” – aos três comandantes das Forças Armadas foi confirmada por pelo menos três fontes diferentes: o tenente-coronel Mauro Cid, ajudante de ordens de Bolsonaro; o ex-comandante do Exército, Marco Antônio Freire Gomes; e o ex-comandante da Aeronáutica, Carlos Alberto Baptista.
Mas não foi só a reunião. Bolsonaristas, no fim de 2022, chegaram a bloquear avenidas e flertar com uma rebelião para subverter o resultado das eleições. Acampamentos na frente dos quartéis-generais duraram meses. Ao final de tudo, a intentona de 8 de janeiro de 2023 resultou na destruição de alguns dos principais símbolos da República. Tudo em nome do golpe. Isso para não falar em episódios anteriores, que revelam com clareza como o presidente tinha um golpe de Estado como projeto político.
Em 2021, após reiteradas ameaças contra o STF, Bolsonaro organizou e mobilizou grandes manifestações de rua cujo mote era um golpe de Estado. Sob o lema “Eu autorizo”, a ideia era mostrar que o “povo” estava “autorizando” uma intervenção. No dia 7 de setembro daquele ano, discursou expondo o plano: “Esse retrato que estamos tendo nesse dia é de vocês. É um ultimato para todos que estão na praça dos Três Poderes, inclusive eu, presidente da República, para onde devemos ir”. O “retrato” desejado autorizaria o golpe. Se voltarmos mais um ano no tempo, quando vários protestos golpistas aconteceram em meio ao auge da pandemia da Covid-19, o chefe de Estado chegou a discursar na frente de um quartel-general, de modo propositalmente sugestivo. Disse na frente da turba de apoiadores: “Nós não queremos negociar nada. Nós queremos é ação pelo Brasil. O que tinha de velho ficou para trás. Nós temos um novo Brasil pela frente (...) Acabou a época da patifaria. É agora o povo no poder”. Ele também teria decidido um dia pela intervenção, até ser demovido por alguns de seus aliados – o palácio presidencial era usado para discutir golpe. Eu, particularmente, acho assustador lembrar o quanto tudo estava às claras. O que só torna mais inexplicável a omissão desse contexto.
O indivíduo que, diante deste quadro, externalizou pedidos golpistas em público – no caso das redes sociais, às vezes para milhões de pessoas ao mesmo tempo – também fez muito mais do que simplesmente emitir uma opinião banal, facilmente combatível no debate de ideias – que, ao menos desde 2018, não é nada racional no Brasil, um pressuposto relevante nos textos de Loewenstein. Essa pessoa gritou “fogo” num teatro lotado. Quem opinou sobre as eleições de 2022, negando o resultado das urnas, diante do contexto fático, estava acusando o comerciante de grãos diante de uma multidão revoltada na frente da sua casa. De novo, nada disso deveria ser ignorado quando os comentaristas e analistas se debruçam sobre os inquéritos de Moraes, mas infelizmente isso é o que tem acontecido – para a alegria da direita que participou de todas as articulações golpistas.
Muitos dos responsáveis pela inundação da esfera pública por desinformação e autoritarismo, aliás, não sofreram nenhuma consequência, pelo menos por enquanto. Estamos falando do topo da pirâmide do governo e de militares da ativa que rasgaram o sagrado compromisso constitucional que devem possuir numa democracia. Mas não só deles. Alguns congressistas, em circunstâncias normais, deveriam, no mínimo, ter perdido os seus mandatos. Ao invés disso, seguem atuando normalmente, alguns deles posando de vítimas do sistema para a extrema-direita global no X, por meio do VPN. Estou falando de Marcel Van Hattem (Novo-RS), que chegou a estar no QG do Golpe. Mas vale mencionar ainda uma reunião sediada pelo Senado em 30 de novembro de 2022, episódio que o brilhante colunista Celso Rocha de Barros costuma lembrar na Folha de São Paulo.
Naquela data, a Comissão de Transparência, Governança, Fiscalização e Controle e Defesa do Consumidor do Senado Federal se reuniu, atendendo a convocação de Eduardo Girão (Novo-CE). A sede do Legislativo foi utilizada para que conclamassem um golpe. Vários deputados participaram explicitamente: Filipe Barros (PL-PR) pediu a aplicação do artigo 142 da Constituição, que na mente dos bolsonaristas, autoriza golpe de Estado; Aline Sleutjes (PROS-PR) pediu que as Forças Armadas cumprissem o que ela enxergava como um dever de intervir; José Medeiros (PL-MT) informou que já havia entrado com pedido de GLO. Ao final, Girão encheu todos os presentes de esperança ao dizer que havia senadores estudando todas as possibilidades. Na plateia, outros congressistas estavam presentes, como a deputada Carla Zambelli (PL-SP) e o então deputado eleito Gustavo Gayer (PL-GO). Junto a eles, estava George Washington de Souza, o homem que tentou explodir o aeroporto de Brasília, na véspera do Natal, para justificar uma intervenção militar. O maior exemplo que gritar “fogo” tem consequências.
Durante a sessão, um dos discursos mais emocionados foi o de Bárbara Destefani, dona do blog “Te Atualizei”, com mais de 2 milhões de inscritos no YouTube, que se disse perseguida pelo ministro Alexandre de Moraes: “Por favor, Senado, por favor, Congresso, parlamentares, socorro. Socorro! Por todas as pessoas que estão na rua, como foi bem dito, elas não sabem mais pra quem pedir ou o que pedir, elas estão desesperadas porque não confiam mais nos representantes que elas elegeram. Por favor, por favor, Congresso, Senadores, não decepcionem o povo de vocês”. Elon Musk defendeu publicamente Bárbara quando Moraes ordenou o bloqueio de sua conta; o perfil oficial do “X” a classificou como uma “jornalista”, o que evidenciaria o autoritarismo do ministro. Ela se tornou alvo do inquérito das fake news pela primeira vez em 2020. Na época, se dedicava não só a ataques ao STF e ao Congresso, como também a desinformação sobre a Covid-19. Exemplos não faltam: num caso, divulgou um vídeo falso que sugeria que as internações pela doença estavam sendo falsificadas para prejudicar o então presidente. Também defendia a eficácia da cloroquina contra a doença. O contexto de uma pandemia é inclusive pior que o de um teatro lotado de gente.
Concordar com a justificativa para a necessidade dos inquéritos e com os objetivos perseguidos pelo STF não significa, contudo, avalizar tudo que o ministro fez e vem fazendo na condução de procedimentos investigatórios secretos, sem objeto – a amplitude irrestrita se tornou a regra – e aparentemente eternos, que se prolongam indefinidamente no tempo. Nos últimos tempos, Alexandre de Moraes usou os seus poderes para perseguir autoritariamente um homem que brigou com o seu filho no aeroporto de Roma; deixou o extremista de direita e ex-assessor presidencial Filipe Martins preso, por meses, ilegalmente, com um fundamento errado que não foi reconhecido como erro; e uma série de reportagens da Folha de São Paulo, co-escritas por Glenn Greenwald, deixaram claro que os ritos procedimentais importam muito pouco na sua atuação. Muitos juristas progressistas tentaram fingir que não havia nada demais nas matérias, o que acho um erro.
A Folha publicou um conjunto de diálogos entre o juiz instrutor do gabinete do ministro; o juiz instrutor do Tribunal Supremo Eleitoral (TSE); e um perito que trabalhava na Assessoria de Combate à Desinformação do TSE, criada por resolução para combater a desinformação virtual. Naquela época, Moraes presidia tanto o TSE quanto os inquéritos das fake news e das milícias digitais no STF. Nas mensagens de WhatsApp publicadas pelo jornal, viu-se que o juiz instrutor do STF, do gabinete de Moraes, procurava o do TSE, ou então diretamente o perito, e determinava a produção de relatórios para lidar com fakes sobre as eleições – aparentemente, a pedido do próprio ministro. A Assessoria então produzia o relatório e o devolvia para o Supremo, onde o gabinete do ministro, nas investigações célebres sob a sua condução, tomava decisões criminais – a exemplo de cautelares como o bloqueio de perfis e aplicação de multas – com base nesse documento, que ele mesmo havia solicitado. Mas Moraes sempre ocultava a origem, dando uma fachada de legitimidade às imposições que, na verdade, eram definidas de ofício.
Em resumo, quando o ministro queria adotar sanções contra um alvo, ordenava a elaboração de um documento sob medida para essa finalidade. Pelo menos é isso que várias das mensagens obtidas pelos jornalistas descortinam. É absurdo, e isso não quer dizer, por um momento sequer, que naquela época as coisas estivessem transcorrendo normalmente no nosso país. Os casos citados são do final de 2022. Nada estava normal. O próprio Alexandre de Moraes – aí sim na presidência do TSE, não como relator de um inquérito – precisou lidar com situações que soariam surreais uma década antes no Brasil. No dia da eleição do segundo turno, a PRF (Polícia Rodoviária Federal) organizou uma operação com foco em estradas nordestinas. Os objetivos eram golpistas – ela foi ditada pelo então ministro da Justiça para, com blitze estratégicas, pensadas em cima de um mapa eleitoral, afetar o comparecimento às urnas e favorecer o presidente que buscava a reeleição. Moraes convocou o diretor da PRF para o seu gabinete, e Silvanei Marques teve a brilhante ideia de comparecer com homens armados, na tentativa de intimidá-lo. Não funcionou. O ministro disse que ele seria preso caso os bloqueios não fossem interrompidos imediatamente. Era esse tipo de situação que ele se viu envolvido.
De qualquer forma, ainda que os democratas brasileiros devessem seguir atentos – já que na polarização assimétrica do nosso país a única oposição viável é a extrema-direita, sem compromisso democrático –, o fato é que o quadro de 2024 não lembra em nada o de 2022, especialmente após a inelegibilidade de Bolsonaro ter sido julgada. Era hora de Alexandre de Moraes exercer a autocontenção. Muitas vezes, os poderes excepcionais que a própria Corte conferiu a ele para lidar com as ameaças antidemocráticas foram abusados. O inquérito das fake news, em específico, já se arrasta há tantos anos que é difícil entender ao certo quando ele vai terminar – se toda e qualquer desinformação golpista for ser tratada por este procedimento, ele seria eterno, o que contraria a própria natureza de uma investigação. A pressão contra o ministro só tem se intensificado. Entendendo esse momento, ele deveria passar a dividir a responsabilidade com o restante da Corte com mais frequência.
Também já passou da hora de relatar os procedimentos investigativos iniciados de ofício. Agora, era hora de usar a calculadora política com a qual vem trabalhando – inclusive ao se abster diante dos flagrantes abusos de poder econômico e de poder político praticados por Bolsonaro na eleição de 2022, o que só torna mais ridículo o papo de que ele interferiu a favor do Lula naquele pleito. Outra ocasião em que o ministro fez um cálculo parecido foi ao decidir não decretar a prisão preventiva do ex-presidente quando uma reportagem do New York Times mostrou que ele havia se abrigado na Embaixada da Hungria, tentando se esconder das investigações. Por tudo que sabemos hoje das concepções jurídicas do ministro, somente a política explica a falta de consequências jurídicas para Bolsonaro nessa ocasião, dado que o intuito daquele refúgio, claramente, revela o risco de fuga – e a tentativa de frustração de aplicação da lei penal é um dos requisitos mais clássicos da prisão preventiva.
Dito isso, Alexandre de Moraes tomou sim muitas decisões esdrúxulas para quem se interessa por direito penal e por processo penal, e aqui no texto só foram mencionados alguns exemplos mais recentes. Fingir que ele sempre acerta é errado. Mas o meu ponto principal é que não é possível dissociar a sua postura do momento que o Brasil estava vivendo ou da atuação militante demonstrada pela nossa democracia. Hoje, diante do enfraquecimento institucional brasileiro, que vem desde 2016, os poderes da República estão “fora das caixinhas” reservadas a cada um. Isso inclui, conforme antes exposto, não só o Judiciário – conforme os inquéritos muito bem evidenciaram – como também o Congresso – cujo poder sobre o orçamento é típico do Executivo, mas que ao mesmo tempo se acovarda e silencia diante do golpismo. Eu, particularmente, interpreto os nossos conflitos com o X como igualmente partes desse todo. Seja pela ascensão do extremismo, que levou Musk a simpatizar até com supremacistas brancos, seja pela omissão do Legislativo, que deveria ter elaborado uma matéria de regulação das redes sociais mais robusta há anos. Uma boa legislação teria o poder de moderar efetivamente as plataformas e, simultaneamente, servir de limite para as ações dos outros Poderes contra esses ambientes virtuais.
Gosto sempre de mencionar o caso da legislação alemã, que tem obtido bastante sucesso com a NetzDG (“Netzwerkdurchsetzungsgesetz”, no original). A norma obriga as mídias sociais com mais de 2 milhões de usuários a remover conteúdo “claramente ilegal” em 24 horas e todo conteúdo ilegal em até 7 dias após sua publicação, sob pena de multa máxima de 50 milhões de euros. As referidas plataformas devem disponibilizar um botão para que haja denúncias com base na NetzDG relativas a violações às leis de discurso alemães, e não aos termos de uso da rede social em si. O conteúdo deletado deve ser armazenado por pelo menos 10 semanas, e as plataformas devem publicar relatórios de transparência sobre o tratamento de conteúdo ilegal a cada seis meses. O Facebook chegou a ser multado em 2 milhões de euros. É uma solução que podia inspirar nossos legisladores – inclusive, por exemplo, para exigir representação no Brasil dessas empresas claramente, talvez de acordo com o seu número de usuários. Hoje, autoridades têm precisado agir em meio a um vácuo normativo. O problema atingiu até o Executivo. No início de 2023, um atentado a uma escola de Blumenau (SC) levou o Ministério da Justiça a ordenar a remoção de postagens que incentivavam e celebravam a violência ou que ameaçavam novos atentados. O X, naquele momento ainda Twitter, de Elon Musk, se negou a colaborar para tirar do ar conteúdos com clara e evidente apologia à violência.
Com tudo isso em vista, mesmo que o ministro recue e adote posição juridicamente mais ortodoxa – o que eu considero importante agora –, os Poderes da República seguirão “fora de suas caixinhas” e a direita brasileira permanecerá sob a liderança de um extremista que tentou, há menos de dois anos, usar as Forças Armadas para subverter o resultado das eleições. A atuação de Alexandre de Moraes não é um remédio dessa doença, mas um de seus vários sintomas. A analogia só não é perfeita porque, nesse caso, o sintoma já foi necessário. Mais do que isso: chegou a ser fundamental, garantindo a realização de eleições em 2022 e que o vitorioso fosse empossado ao final, como mandam as democracias. Com o ministro na sua caixinha, o restante ainda não vai ter se ajeitado. E o perigo é surgir a necessidade de, mais uma vez, o STF se insurgir com as ferramentas que tem à disposição para defender o regime democrático. Não é exagero, até porque a direita, inspirando-se em autoritários como Viktor Orbán e Nayib Bukele, já planeja impeachment de ministros do Supremo para 2027. E, diante de ameaças existenciais, a Constituição de 1988 precisa de uma democracia bastante militante mesmo. Mesmo assim, seria importante que Moraes voltasse à caixinha reservada a ele na República.
O papel do Supremo foi fundamental para proteger a nossa democracia constitucional, ainda que tenha se valido de medidas heterodoxas, como os inquéritos sob o comando de Alexandre de Moraes. Mas já é hora disso acabar e de retomarmos a normalidade. O que um dia serviu para a democracia militar contra uma ameaça existencial a si mesma hoje impacta na sua qualidade enquanto regime. No entanto, os demais Poderes da República, tanto o Executivo quanto o Legislativo, também precisam colaborar. Eles têm uma função essencial a ser desempenhada no aprimoramento da democracia, e deveriam se envolver na aprovação de legislações necessárias a essa finalidade. Por mais difícil que seja imaginar isso acontecendo agora, era o momento ideal para todo mundo entrar em acordo e voltar às próprias caixinhas. Mas não é o que parece mais provável. Assim como o Congresso se acostumou a exercer funções típicas do Executivo e com as emendas que convidam a corrupção desenfreada, o Judiciário tomou gosto pelo poder extraordinário que se autoconcedeu. Quem sabe o ministro Alexandre de Moraes, contudo, pudesse dar o primeiro exemplo, finalmente relatando os inquéritos. Seria um gesto importante para o Brasil voltar a se organizar normalmente.